Todo dia era aquele ritual cansativo. Arrastando os pés depois de sair da cama escorregando pelas cobertas, Jandira ia até o fogão e acendia a boca da esquerda porque a chama ainda era a mais forte. Lá em cima ficava a leiteira, que ainda nova assoviava alto quando estava na hora do leite derramar, mas agora nem mais isso. E assim como a leiteira velha, Jandira também deixava todo dia o leite derramar. Ela xingava, mas não fazia nada diferente. Nem no chuveiro. Ensaboava as costas pelo mesmo lugar há 15 anos. Nesse tempo, podia contar quantas vezes trocara a esponja que vivia aos pedaços. Depois vestida de roupas sem graça ela ia até o espelho e escovava o cabelo com um desdém, esquecendo que o cabelo era dela mesma.
Na hora de sair aí sim, surgia junto com um baton vermelho uma certa vontade de ver novidades e ela estava certa que aquilo era o suficiente, que o mundo haveria de contribuir-lhe com esse pedaço ridículo de desejo.
Mas que novidades podem ser vistas por alguém que faz tudo ser velho, que gosta de atribuir ao outro a sua própria sem gracisse. Mas cega de um olho só, ela ia todo dia dizendo viu?, sabia!, ai ai, nossa! credo, inventado histórias e fadas, imaginando o mundo perfeito e dando justificativas pra ele existir aos olhos dos outros, assim como a grama que ela preferia a do vizinho... e assim vinha a noite, e outro dia que o leite ali se encontrava caidão.
O leite foi derramando pela vida de Jandira. Ela foi perdendo oportunidades. Ora porque estva acostumada com aquela chatice viciante, ora porque tinha preguiça de fazer diferente. É porque no fundo no fundo, faltava coragem pra enfrentar a louça. Pra lavar a leiteira, pra arrumar seu assovio e até para ouví-lo evitando assim que tudo derramasse. Então que seja assim, ué!
A lenda do leite derramado. Não adianta chorar o leite derramado, não é isso? Mas a verdade é que não se lamenta porque ele já caiu, mas porque já fazia um bom tempo que se sabia que um dia haveria de se ter que limpar o fogão.
Jandira querida, vai chorar no ombro de outro.
Fruta como botão, pretinha, redonda. Alegria dos passarinhos da árvore da casa do Seu Lauro. Feito os olhos, os meus. Eu vejo conto e invento. Eu por aqui me apresento.
16/09/2008
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eu sou

- Cice Galoro
- Gosto de boniteza, de arrumação, da moda dos anos 30. De margaridas e pérolas verdadeiras. Gosto da noite, de gente dando risada, do colorido de um prato de feijoada. Gosto de sair e de mudar, gosto de família, de amigos e com eles estar. Gosto de dança e de criança, e gosto muito, muito do mar.
Um comentário:
você escreve hermetices porque sabe que eu sou curiosa e amanhã dou plantão aí para saber quem é essa Jandira!
beijo
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