16/09/2008

a lenda do leite derramado

Todo dia era aquele ritual cansativo. Arrastando os pés depois de sair da cama escorregando pelas cobertas, Jandira ia até o fogão e acendia a boca da esquerda porque a chama ainda era a mais forte. Lá em cima ficava a leiteira, que ainda nova assoviava alto quando estava na hora do leite derramar, mas agora nem mais isso. E assim como a leiteira velha, Jandira também deixava todo dia o leite derramar. Ela xingava, mas não fazia nada diferente. Nem no chuveiro. Ensaboava as costas pelo mesmo lugar há 15 anos. Nesse tempo, podia contar quantas vezes trocara a esponja que vivia aos pedaços. Depois vestida de roupas sem graça ela ia até o espelho e escovava o cabelo com um desdém, esquecendo que o cabelo era dela mesma.
Na hora de sair aí sim, surgia junto com um baton vermelho uma certa vontade de ver novidades e ela estava certa que aquilo era o suficiente, que o mundo haveria de contribuir-lhe com esse pedaço ridículo de desejo.
Mas que novidades podem ser vistas por alguém que faz tudo ser velho, que gosta de atribuir ao outro a sua própria sem gracisse. Mas cega de um olho só, ela ia todo dia dizendo viu?, sabia!, ai ai, nossa! credo, inventado histórias e fadas, imaginando o mundo perfeito e dando justificativas pra ele existir aos olhos dos outros, assim como a grama que ela preferia a do vizinho... e assim vinha a noite, e outro dia que o leite ali se encontrava caidão.
O leite foi derramando pela vida de Jandira. Ela foi perdendo oportunidades. Ora porque estva acostumada com aquela chatice viciante, ora porque tinha preguiça de fazer diferente. É porque no fundo no fundo, faltava coragem pra enfrentar a louça. Pra lavar a leiteira, pra arrumar seu assovio e até para ouví-lo evitando assim que tudo derramasse. Então que seja assim, ué!
A lenda do leite derramado. Não adianta chorar o leite derramado, não é isso? Mas a verdade é que não se lamenta porque ele já caiu, mas porque já fazia um bom tempo que se sabia que um dia haveria de se ter que limpar o fogão.
Jandira querida, vai chorar no ombro de outro.

Um comentário:

Ana Paula Marques disse...

você escreve hermetices porque sabe que eu sou curiosa e amanhã dou plantão aí para saber quem é essa Jandira!

beijo


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Gosto de boniteza, de arrumação, da moda dos anos 30. De margaridas e pérolas verdadeiras. Gosto da noite, de gente dando risada, do colorido de um prato de feijoada. Gosto de sair e de mudar, gosto de família, de amigos e com eles estar. Gosto de dança e de criança, e gosto muito, muito do mar.