12/01/2025

Espelho

 Tinha sempre em mim uma mágoa descabida. De tão boa era feita minha vida, porque será que tantos rasantes me entristecem, coisas que achavam minhas se iam para as mãos de quem não queria que fossem. Fugiam para tão perto. Era assim um quê ​de engraçado esse negócio de escapar de mim o que eu mesma tinha de tão bom. Era como se não deixasse que fosse meu, vontade de brincar com a felicidade para que ela ficasse triste. Um sal na boca o tempo todo, de alegria para voz rouca de engasgo na garganta.


Era sempre assim, mas não precisava ser.

Num dia diferente depois da missa, domingo igual os outros nascia a futura miss Brasil. Feinha, de cabelos compridos  e pretos sem ornar com aquela frase. Os olhos bem inchados prometiam que iam olhar bem o mundo mas não aquela hora, depois, como que prometendo sempre um daqui a pouco pela vida toda. Mas cheia de bênçãos, espera e alegria,​ lá estava ela, desfilando por tanto que seria viver. De escorpião como sina que era para ter uma desculpa nas horas amargas que, não parecia, mas chegariam um dia desses. E ali embrulhadinha na manta rosa, assinavam o testamento seja mulher, mulherzinha. Aquilo que o mundo espera de você.

Corria, corria, adorava aquele vento contra o cabelo que embaraçava os cachos. E mentia. Inventava. Mas mentia também e muito, porque queria ser um passo na frente, uma coisa que podia ser mas como tinha o tempo pra passar, preferia pular e contar uma história imaginada muito mais divertida do que esperar ela chegar. 
​E​
isso ia satisfazendo e fazendo fila de encantamento 
​e​
feito bloco de carnaval todo mundo bailava atrás. E era como um magnetismo crescente, de corpo bem feito, cheio de ginga nos pés e atenção nas histórias. Gostava delas, mesmo das verdadeiras. É isso ia se resumindo
​nu​
ma série de bem viver, que ia dando certo e abençoando os dias, mesmo sendo eles sempre rastejados ou a margem do que seria o desejo material. Tinha todas as bênçãos do céu
​,​
mas insistia em querer a terra, e quanto mais crescia o corpo a alma diminuía, como se fosse a frase da miss a única esperança que sobrava na lembrança de uma vida.

Triste seria assim.

Mas acreditava no Criador, quase que nascer
​a​
na missa
​,​
e por essa razão de domingo, ali ficava o fio de serenidade e verdade que sabia ter e aí lutava com seu erro pelo acerto que sempre lhe foi tão derramado. Vivia em tempos percebendo as ervas daninhas misturadas no bom jardim e se irritava que elas viessem sempre para azucrinar as escolhas difíceis que fazia numa mistura de certeza 
​e​
dúvida que ninguém entendia.

Não combinava.

Era para ser atriz, dançarina ou jornalista
​,​
mas acabara professora
​ e mesmo por amor​
 vivia por correr atrás da passarela e os dias levaram os seus aprendizes e os seus instrutores para longe, trazendo peneiras de ilusões, quase sempre totais mas 
​ainda​
faltando alguma coisa, que ela mesmo boicotava sem saber. E assim os dias foram indo.

Tinha profundidade em uma palavra, língua afiada. Forte e conclu
​s​iv
a
​.​
 
​V​
irava as páginas rápido
​,​
mas depois procurava linhas para ler de novo. Alguns bons livros valiam a pena, mas outros empacavam os capítulos e eram tampas que não combinavam com as panelas. A intensidade da sua pele se dava por crer, por ter fé. Por amar falar de Jesus e do amor espiritual. Mas tanta fé e não sabia perdoar. Era difícil de não querer 
​e muito fácil de​
ser querida, mas quando assim acontecia não queria, não queria mais nem ela 
​e​
nem ninguém.

Era do amor, da vida calma. Acreditava nas palavras que diziam fácil como tinha que ficar do lado da paz. Sentava no chão de terra e esperava, quietinha o que seria que amanhã acontecesse
​,​
e mesmo que nada acontecia, al
​i​
sonhava o mundo, ultrapassando as estrelas daquele céu cheinho delas que todo mundo queria mas só ela tinha. 

Um céu cheinho delas. 

E chorava uma nostalgia do que não sabia lembrar. Usava o que sentia como vestimenta, ora boa de amar ora ódio negro que doía. Não sabia começar 
​e​
nem terminar, mas vivia o meio tanto tanto
​,​
que deixava marcas e rastros e em nome do certo geralmente cometia erros e era dura consigo mesm
​a​ quando
 não acreditava em tantas bênçãos e milagres e transparências porque eram sempre testadas
​,​
e ela
​​
difícil de manter suas escolhas
​,​
sofria uns arrependimentos porque sa
​bi​
a que poderia ter suportado mais, suportava tão bem a dor. 

Como podia deixar assim as brigas pra trás? 

Mas do amor ela dava a mão e se agachava na chuva deixando a água bater nas costas largas que deixaram sonhos pra trás e 
​traziam​
uma preguiça por ali que era pecado.
​ Só que ​
gostava de rezar, precisava da reza e assim que começava a falar com Deus seu coração se acalma
​va​
e distraída pensava que tudo estaria resolvido.

Gostava de gente simples
​,​
mas da simplicidade duvidava
​.​
 
​T​
inha uma mania de olhar nos olhos bem lá dentro para ver se valia a pena ficar por ali, mas julgava o tempo todo e não queria mais esse julgamento porque a vida passara e já era mais pra 
​lá ​
do que pra cá para ainda ter esses apegos que não deviam existir nas pessoas de fé. E ela queria ter a fé, e doía, porque queria pagar as contas e ir nas lojas também e  porque deixava assim tanta facilidade pra trás, tão esperta e todo mundo sabia passar a perna porque faltavam as palavras que sabia tanto articular em horas erradas.

É que tem gente tão bonzinho, com olho bom que senta no canto da mesa e espera todo mundo pegar a comida mesmo quando tem muita fome, pra esses tudo. Sobre o que contar? Sobre vaidade? Sobre posse? Se perdoe. Se perdoe pelo menos à noite. Admita fracassos e limites mas também abrace a apalpe qualidades e boa sorte.escrevia tudo, via e procurava as palavras que saltavam do coração, de verdade elas falavam nas linhas, com língua e barulho de voz. Ponto final e exclamação dava pra ver, porque nascia o conto, mas não conseguia ir e ir e ir. Punha ali a emoção e ela dizia chega. Sem dono. E aí faltava assunto em tanta conversa. E voltava então pra ver os olhos e o sorriso de quem tinha alma no corpo e sabia tocar a vida como quem toca violão solo, mesmo se desafinasse e voz, porque não perdoava a si, mas perdoava quem desafinava com pureza. Fechava as portas mas antes de fechar os olhos abria todas porque queria todo mundo por perto.sonhava em saber tanta história e entender as cabeças das pessoas, mesmo as malvadas, mas só aquelas que permaneciam pela história, porque tinha impaciência com maldade pouca. Mas não sabia muita coisa, Lia pouco, não guardava nomes, mas a sorte de saber o certo era também um milagre que gostava dela. Os milagres gostavam dela, mesmo sendo flácida quando poderia ser mais rígida, ou pelo menos não ter tanta dor no pé. Doía porque acumulava necessidades de tempo pra lá e pra cá. Tava bom, aí se lotava de coisas pra segurarem a ida. Seria porque só tem calma quando se tem caos? Gosta de quem se entrega e beija a mão e grita no show e dança de braços abertos chacoalhando a cabeça mesmo se usa óculos. E daí?

Tinha uma misturada na vida. Terreiro, samba, castelo de rainha com vira da cama e bate cabeça com a hóstia sagrada e não perdia um dois de fevereiro porque queria ser ​preta pra provar que ama o que é diverso mesmo que de fora ​parece que não sabe lidar​, sabe e bem.
É bonito ver quem presta a atenção na conversa do outro quando ele fala. Gostava de quem chora quietinho também e que fica feliz só num pedacinho da vida, sem precisar sai
​r​
de si. 
E depois entender tudo. 

Ouvir e dizer, já sei. 
Já sei Senhor. Já sei. 

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Gosto de boniteza, de arrumação, da moda dos anos 30. De margaridas e pérolas verdadeiras. Gosto da noite, de gente dando risada, do colorido de um prato de feijoada. Gosto de sair e de mudar, gosto de família, de amigos e com eles estar. Gosto de dança e de criança, e gosto muito, muito do mar.