15/01/2008

fim da linha

E no dia do ano novo eu me dei conta que minha vó, dona Conceição, Concheta em italiano e na versão original de fábrica, chega ao fim da sua vida. 96 anos. Ela tá muito fraquinha, magrinha, curvada, leve com uma folhinha ali naquela cama que ficou gigante, a voz sai que nem um fio, mas o que mostra mesmo que falta bempouquinho, é o olhar. Fundo, fora de forma, já meio desfigurado pelo tempo.

Dona Téta foi e ainda é uma mulher difícil apesar da fragilidade do momento. Daquelas de dar inveja nas bruxas dos contos de fada. Uma mãe de filha única que sempre negou essa condição. Ciumenta, amargurada, capaz de palavras cheias de fel e dor. Rude a ponto de internar a filha numa escola e privá-la da vida, da bicicleta, das brincadeira de infância por puro egoísmo. De amaldiçoar as conquistas, os sonhos, as pessoas mais queridas só para vê-la chorar. De remar com unhas e dentes contra. E continuou assim até agora há pouco, bem pouco. Não foi fácil.

Viveu cercada e cercando os passos de todos como um auditora prestes a entregar os erros. Sem dó. Articulou momentos delicados expondo uns contra os outros e dissimulando sua consciência.

Hoje eu paro e penso em tudo isso, mas não consigo ter rancor, ao contrário. Parte porque ela tá tão frágil nesse momento que até o maior dos ódios dobraria-se ao perdão, e grande razão porque a pessoa a quem ela mais judiou perdoou ela já faz muito tempo. E sozinha.

Tenho na memória também coisas bem boas. Da criação que recebi praticamente em conjunto dela, me lembro bem dos sustos fingidos atrás dos muros, que ela tomava na levada do espírito amoroso do seu Lauro. Do dia que ganhei o jipe amarelo, a Lalá e o Lulu. Das cantigas de roda em italiano que ela me ensinou, das danças no quintal mexendo as mãos, de ir e vir da bivó sempre junto na rua Antonio de Barros.

Escrevendo agora posso sentir o gosto e o cheiro das alcachofras imbatíveis que ela fazia, das viagens ao interior onde era a única vez que ela vestia calças compridas. Vejo ela colocando o relógio de ouro e a corrente de crucifixo que acompanhavam nossa viagem com a bolsinha preta de bolinha em cima, de metal, daquelas que fazem click, com o dinheiro dos pirulitos que comprávamos no caminho pelos postos afora. Com ela e o vovô aprendi a rezar o terço, a Salve Rainha, todos os dias sem preguiça, a pedir a benção de mãos postas. É herança dela o meu medo de barata e muitas risadas que demos por conta disso. Com ela me encanteicom os filmes de dragões e princesas que passavam à tarde e até hoje carrego minha imaginação por conta desse impulso. Recentemente vejo também meus filhos velados pelas suas orações e gosto deles terem conhecido sua bisavó.

É.. a Dona Concheta também faz coisas bacanas, apesar de tudo. A melhor delas foi ter casado com meu avô e ter tido a minha mãe. Ninguém tão ruim assim mereceria duas grandes almas em sua vida. Por isso acredito nos motivos.

Minha avó foi assim. Dura. Rancorosa. Chata. Mas foi a avó que eu escolhi. Com ela e por ela, aprendi mesmo que a gente cumpre momentos na vida, etapas. Que o universo é atemporal e a alma precisa de resignação, de resgates e entendimentos.

Na linha da vovó vem uma série de seres em evolução a partir dela. Eu inclusive. Então, agradeço agora a oportunidade de uma vida de muitas privações, elas tinham que existir. E peço um final feliz. Um happy end, como nos filmes e novelas. Bem no último capítulo, e talvez até no último instante, como foi com o bivô - seu pai.

O que importa é que ela viveu sua história e agora deve terminar esse texto em paz, e em breve.

Enquanto espero dou pra ela um carinho sem exagero porque tô também em paz, na verdade dou o mesmo carinho que sempre dei, falando as coisas que quis na hora que quis, mas não deixando de ir lá na casa dela toda vez que eu chego na mamãe pra lhe dar um beijo na testa. E rezo, rezo muito pra que ela não sofra o que não precisa, porque a vida já perdoou. Que ela vá na hora que tiver que ir, sem dor.

É vó, a vida fez com que a senhora se curvasse fisicamente já que foi, ou ainda é, tão difícil curvar-se espiritualmente. Mas Deus é tão bom que mesmo quando a gente decide disputar a sorte de viver, mas no fundo nossas sementes são boas, Ele nos dá a grande oportunidade de recebermos a graça através do martírio do corpo. Só que essa oportunidade não é imposta, pode soltá-la no vento que Ele leva pra longe e perdoa tudo igualmente.

Confie! não é preciso sofrer nada agora. Tá tudo certo.
Dessa forma, certamente, a senhora vai alcançar o descanso.

Fique bem e com Deus.
Um beijo, Cice.

Um comentário:

Julia disse...

Cice,
Queria pensar assim como você sobre a vida e a morte...
beijos
Julia


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Gosto de boniteza, de arrumação, da moda dos anos 30. De margaridas e pérolas verdadeiras. Gosto da noite, de gente dando risada, do colorido de um prato de feijoada. Gosto de sair e de mudar, gosto de família, de amigos e com eles estar. Gosto de dança e de criança, e gosto muito, muito do mar.